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O guardião da constituição trinta e cinco anos depois

O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO TRINTA E CINCO ANOS DEPOIS.

A Constituição de 1988 concebeu o STF como um órgão imparcial, neutro politicamente, que servisse de “guardião da Constituição”. Ou seja, garantisse o quadro normativo que a Constituinte definiu.

Isto era uma tarefa complexa e delicada, porque ela era detalhista, disciplinava não apenas a ordem política, adotando a democracia representativa, a separação de poderes, o estado de direito, consagrando os direitos fundamentais, mas também a ordem econômica, com a livre iniciativa, contudo com a intervenção do Estado e a ordem social, dispondo sobre o meio ambiente, a educação, os indígenas, etc. E tudo dentro do respeito a princípios como o da dignidade da pessoa humana tal qual o Constituinte os concretizara.

Não lhe deu, porém, o poder de alterar o sentido e o alcance de seus preceitos. Quanto a isto, pressupunha que seguisse rigorosa e juridicamente o que o Constituinte estabelecera.

Hoje, trinta e cinco anos depois, o STF é um órgão visto como politizado, e por muitos considerado e tratado como um poder político embora não se enquadre entre os que a Lei Magna arrola como podendo representar o povo (art. 1º, parágrafo único).

Decorre esta visão do fato de que, no período mais recente, marcado pela anormalidade, dada a covid e atos antidemocráticos, o STF, se não alterou o texto escrito da Constituição, pois, não é poder constituinte, deu às normas constitucionais o sentido e o alcance que melhor lhe pareceu, editou decisões normativas que equivalem na prática a leis, cuja edição cabe ao Legislativo, determinou políticas públicas, o que cabe ao Executivo, enfim, tem ido além de sua função estrita.

A intenção certamente foi boa. Atualizar o que na opinião das elites vanguardeiras não é justo, corrigir o estado de coisas inconstitucional, proteger a democracia, os noticiários enganosos ou falsos, garantir o combate à pandemia, combater a corrupção, tudo isto recebeu o aplauso da imprensa, de grupos identitários, mas mudou aquilo que, em sua substância, fixava e fixa a Constituição de 1988.

E o custo disto é a visão que se mencionou e que hoje se manifesta nas tribunas do Legislativo e nas propostas que lá tramitam. No fundo, a crítica acerba de que o STF “legisla” e não se limita à sua missão de guardar a Constituição e até de fato “mude” a Constituição. É natural que neste atual quadro se propugne até ser instituída, uma Corte especial para dirimir questões constitucionais, como as que existem pelo mundo afora.

Lembre-se que a Constituição inovou ao prever uma ação de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, está claro, porém, que tal omissão não autoriza o STF senão chamar atenção do Congresso nacional para a necessidade de legislar sobre determinada matéria, sem sequer fixar prazo para tanto. Está isto hoje no art. 103, § 2º, o que clarissimamente veda qualquer pretensão de o STF legislar, mesmo em caso de inércia do Legislativo e, com mais razão, quando ele debate o tema e busca o melhor tratamento jurídico a ser dado a um tema grave para a sociedade.

Sem dúvida, o texto de 1988 previu também uma “arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição” (que seria apreciada pelo STF na forma da lei”). Esta “argução” foi regulamentada, pela Lei 9.868/99, que evidentemente não dá nem poderia dar ao STF o poder de exercer funções do Legislativo nem do Executivo, pois se o fizesse seria inconstitucional por violar a cláusula pétrea da separação dos poderes (Constituição art. 60, § 4º, III).

Tal “arguição” se tornou o principal instrumento – não o único – para o STF tratar de tudo o que, ainda que vagamente, seja decorrente da Constituição. Por meio dela, ele passou a poder fazer tudo o que lhe parece adequado ou conveniente, inclusive ideologicamente. Com efeito, o que não é fundamental na Constituição, lei fundamental por definição?

Sem dúvida, são as ADPFs o instrumento principal que que enseja o desenvolvimento do papel político (e ideológico) do STF. Ela o imerge na política o STF e o torna um super-poder – o mais poderoso dos poderes que dispõe até das competências dos dois outros poderes, os poderes eleitos democraticamente. Entretanto, como seu perfil resulta apenas de lei, pode ser alterado por meio de simples lei.

Para isto, muito contribui o fato de que esse super-poder ser não raro exercido por meio de liminares monocráticas que já atendem de fato ao pedido, editando como que leis ou bloqueando normas adotadas em leis, no sentido restrito do termo. E tais liminares não raro têm persistido vigentes por longo tempo, sem que sejam apreciadas pelo plenário. E para isto muito servem os pedidos de vista.

É hora de repor o STF nos parâmetros da Constituição.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho

Professor Emérito de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP.

5 de outubro de 2023

Publicado no Blog Fausto Macedo – ESTADÃO na data acima.