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A ciência diz: chega!

José Renato Nalini

Artigo originalmente publicado no Estadão em 01/05/24

Ninguém pode dizer que não sabia. Se não sabia, tinha a obrigação de saber. Invoco o brocardo latino “ignorantia lex neminem excusat”, ou seja, desconhecer a lei não escusa o seu infrator de infringi-la. Não basta dizer que “não sabia”. A lei estava lá, à disposição de quem se interessasse por conhecê-la. E obrigação da cidadania é conhecer a normatividade que rege sua vida e seu tempo. 

            O princípio não pode ser diferente quando se trata de lei física ou lei natural. Ao contrário: esta se sobrepõe à lei positivada pelo homem. Tanto que uma das definições mais adequadas de lei, como norma elaborada pelos humanos, é “expressão necessária que se extrai da natureza das coisas”. O Direito Natural prima por essa concepção. Tudo o que rege o universo já foi previamente estabelecido. Cumpre às criaturas ajustar-se a essa harmonia. Não ultrajá-la e, deliberadamente, vulnerá-la. 

            Se a humanidade primasse por fiel observância das leis que regem o mundo, a situação atual não se prenunciaria tão apavorante conforme se delineia. 

            Os recursos naturais são finitos e, na síntese do conceito de sustentabilidade, “sabendo usar não vai faltar”. Mas abusamos. Vamos muito além do racional. Praticamos a insensatez. Desmatamos, poluímos a atmosfera, o solo e as águas. 

            Os cientistas nos advertiram durante décadas. Restamos surdos e cegos. Insensíveis. O resultado está aí. Emergências climáticas das quais não escaparemos. Podemos tentar adaptar as cidades para que não se percam vidas. Mas já não temos condições de evitar as catástrofes. Alguns chamam “desastres naturais”. Mas são, na verdade, “antinaturais”, provocados pela insanidade humana. Barbárie perpetrada pela única espécie que se vangloria de ser racional.

            Nunca se dispôs de tanta informação, dados e evidências. Nada tem sido levado a sério. Um pequeno exemplo é a realidade contida na Carta Geotécnica de São Paulo de 2024.

            Depois de trinta anos, a maior cidade brasileira dispõe desse instrumento de Aptidão à Urbanização, elaborado pelo IPT, em parceria com a Prefeitura da Capital. Texto de Priscila Mengue e Lucas Thaynan (OESP, 24.6.2024) informa que 23,9% da área da capital paulista, ou seja, um quarto dela, não comporta novas construções. Alguém se deu conta disso? O poderoso setor da construção civil está atento para essa preocupante realidade?  

            É um território insuscetível de densificação. Destinado a abrigar obras de adaptação, mormente hospedar áreas verdes, jardins, áreas drenantes e paisagísticas. Enquanto isso, apenas 16 ,8% do espaço ostenta aptidão para merecer construções. O problema é que quase todo ele já foi colhido pela explosão imobiliária. 

            A peça técnica, elaborada com precisão, considerou os graus de suscetibilidade a fenômenos como inundações, afundamentos, deslizamentos, alagamentos, erosão e demais problemas geológicos e hidrológicos. A cidade foi dividida em vinte unidades geotécnicas. 

            A maior parte de São Paulo – 59,2% – é composto de locais de média aptidão para a expansão urbana. São espaços como Perdizes, na Zona Oeste e no entorno da estação Tatuapé do Metrô, na Zona Leste. O que significa “média expansão”? É recomendável ainda passem por estudos geológicos e hidrológicos antes de implementação de novo projeto. Isso para avaliar adaptações e detectar vulnerabilidades significativas. 

            A geotécnica indicou o que é de senso comum: locais de baixa ou nenhuma aptidão têm maior potencial para ocorrências nefastas. São partes das várzeas do Tietê e Pinheiros, Vila Leopoldina, Barra Funda e até Alto de Pinheiros. Antes de qualquer empreendimento, é prudente um projeto de avaliação mais detalhado, sempre cabível a sugestão de não ocupação, para precaver ou prevenir desastres. 

            A natureza é sábia. Ao longo dos rios, o solo é compressível ou “mole”. Formado de sedimentos transportados pelos cursos hídricos, com alto percentual de material orgânico, elevado teor de umidade e pouca resistência para suportar cargas. São locais vocacionados a áreas de lazer, de entretenimento, aptos a acolher jardins, florestas urbanas, amplos “jardins de chuva”. Onde o escoamento do excesso de água se fará naturalmente, sem riscos para a população.  

            As emergências climáticas vão aumentar a ocorrência de fenômenos extremos. Daí a importância de se estimular debates sobre a conveniência de se estabelecer mais restrições e exigências para a continuidade da densificação de São Paulo. 

            No momento em que a capital recebe profusão de novos edifícios, é hora de pensar seriamente na remoção dos mais vulneráveis, que ocupam áreas de risco e de só autorizar novas edificações em solos resistentes, não naqueles que vão gerar consequências danosas para a vida humana e para o ambiente.     

            Aprender com a natureza é o que de melhor pode ocorrer para a humanidade teimosa, pretensiosa e egoísta. Se não aprender por bem, aprenderá sofrendo. 

José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Secretário-Executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo.